Esteatose hepática e a necessidade de niacina, qual a relação?
A doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) é a doença hepática crônica com maior prevalência em todo o mundo, e está relacionada principalmente à presença de obesidade e diabetes tipo 2 (DM2). A DHGNA compreende diversas condições clínicas que vão desde a esteatose simples até a necroinflamação e balonização que juntas definem a esteatohepatite não alcoólica (EHNA) que por sua vez pode evoluir para fibrose e depois para cirrose e carcinoma hepatocelular (CHC).
O estilo de vida é um fator muito importante para a condição, mas a EHNA tem forte componente genético. A gordura hepática é o principal fator de progressão para lesões hepáticas em fase terminal em indivíduos geneticamente predispostos.
O polimorfismo no gene PNPLA3 (rs738409), domínio 3 contendo fosfolipase semelhante à patatina, tem sido associado de forma consistente a todo espectro da DHGNA em diversos estudos populacionais. É o preditor genético mais forte para DHGNA, com alta prevalência entre os indivíduos que desenvolvem EHNA, dentre os quais em torno de 34% são carreadores do alelo mutante em homozigose (GG). Já portadores heterozigotos (CG) mostram maior prevalência de EHNA e fibrose do que os pacientes homozigotos para o alelo de referência (CC) e menor que os homozigotos para a variante (GG).
Ainda a presença em homozigose do alelo G para o gene PNPLA3 tem sido associado a um risco 2 vezes maior de desenvolver EHNA e cirrose, com um risco até 12 vezes maior para desenvolvimento de CHC, com um aumento de 18 vezes na mortalidade relacionada ao fígado, sugerindo um risco alélico dependente da quantidade de alelos variantes presentes.
A proteína PNPLA3 localiza-se na superfície das gotículas lipídicas (GL) e possui atividades de triacilglicerol hidrolase e aciltransferase, que promovem a remodelação de GLs em hepatócitos e células estreladas hepáticas. A substituição da isoleucina pela metionina na posição 148 leva a uma hidrólise reduzida de ácidos graxos, produzindo uma mobilização prejudicada de triglicerídeos (TG) que se acumulam no fígado, isso é causado pela presença de uma cadeia lateral maior na metionina, o que bloqueia o acesso dos ácidos graxos ao sítio catalítico, dificultando a atividade hidrolítica do PNPLA3.
Esta alteração leva a um aumento dos ácidos graxos e a formação de TG, prejudicando a hidrólise de TG e pode enfraquecer a remodelação de ácidos graxos poliinsaturados de cadeia longa (PUFAs) dos TG. Pode haver interrupção da ubiquitilação e a degradação proteassomal do PNPLA3, resultando no acúmulo da proteína mutada nas gotículas lipídicas e na mobilização lipídica prejudicada. Ainda, os carboidratos podem induzir o acúmulo mutante de PNPLA3 na superfície das GLs, piorando o conteúdo de gordura hepática.
Atualmente as recomendações clínicas para tratamento das DHGNAs baseiam-se na mudança de estilo de vida, como exercícios diários e dieta saudável. Alguns medicamentos estão em estudo, mas seus resultados são marginalmente positivos. Os estágios avançados da DHGNA são irreversíveis, mas a estatose hepática isolada e EHNA precoce oferecem uma janela terapêutica para intervenções baseadas em modificações nutricionais e estilo de vida. A perda de peso eficaz e manutenção da perda de peso está associada à melhoria no controle glicêmico, redução da resistência hepática à insulina, nos valores de transaminases hepáticas e melhora na histologia hepática.
A resposta à dieta também pode diferir dependendo da presença do alelo variante G para o gene PNPLA3. Para os portadores do genótipo GG a fração de gordura hepática é fortemente influenciada por carboidratos e açúcar, cujo consumo pode induzir a proteína-1C de ligação ao elemento regulador de esterol (SREBP1c) e, por sua vez, a expressão da proteína mutada PNPLA3, exacerbando assim a deposição de gordura. A suplementação com ácidos graxos ômega 3 pode modular e reduzir o depósito de gordura no fígado para os portadores do alelo G.
Outro nutriente importantíssimo é a niacina (ácido nicotínico) que pode modular a esteatose hepática. Doses farmacológicas de niacina têm efeitos favoráveis sobre os parâmetros lipídicos, aumentando o colesterol da lipoproteína de alta densidade (HDL-C) e diminuindo o colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL-C), TG e lipoproteína (a). Em modelos animais, a administração de niacina associada à alimentação hiperlipídica reduziu a formação de TG hepáticos e circulantes, também reduziu a peroxidação lipídica melhorando a esteatose. O possível mecanismo associado à proteção da niacina é a redução na expressão de acil-CoA diacilglicerol aciltransferase 2 (DGAT2), comprometendo a síntese de TG e a produção de espécies reativas de oxigênio e inflamação ao inibir a interleucina-8 (IL-8). A inibição de DGAT2 pela niacina pode reduzir a localização nuclear do SREBP1c que está envolvido na regulação de PNPLA3. Ainda pode auxiliar na redução da esteatose hepática inibindo a lipogênese de novo (novos lipídios) através da ativação da via ERK1/2/AMPK/SIRT1. A SIRT1 também está envolvida na regulação de SREBP1c de forma paralela à regulação de PNPLA3, juntamente com a ativação de AMPK, regulando lipogênese de novo, sugerindo a interação gene-nutriente. Portanto a niacina pode reduzir o acúmulo de gordura regulando negativamente a síntese de TG e a suplementação de niacina reduz o conteúdo de gordura intracelular devido a combinação de síntese reduzida de TG e lipogênese de novo. Ainda reverte o estresse oxidativo e a inflamação possivelmente pelo efeito na eliminação de lipídios.
Em estudo com indivíduos obesos que desenvolveram DHGNA foi verificado reduzidos níveis de niacina plasmática e que os portadores do alelo G para o gene PNPLA3 apresentavam os menores níveis de niacina séricos de forma significativa. O que indica um peso aditivo da variante G do gene PNPLA3 na obesidade e na absorção de niacina. Portanto a disponibilidade de niacina, a principal fonte de síntese de NAD, pode ser afetada em pacientes com predisposição genética impulsionada pelo PNPLA3 para desenvolver DHGNA e mais ainda em pacientes obesos.
De forma complementar, quando analisada a expressão de genes envolvidos nas vias biossintéticas do NAD e das enzimas dependentes de NAD/NADH, foi encontrado que o genótipo de risco PNPLA3 pode afetar o metabolismo da vitamina B3, modulando a expressão de genes consumidores de NAD/NADH. Sendo assim, a disponibilidade de niacina e a biossíntese hepática de NAD são alteradas na presença do polimorfismo. Desta forma a presença do alelo G pode interferir no papel protetor da niacina
A niacina é um micronutriente essencial que faz parte das vitaminas do complexo B. É sintetizada a partir do triptofano, na razão 60:1, e obtida por fontes alimentares, como levedura, carnes (fígado, frango cozido, peixes – cavala, truta, salmão, carne de carneiro, carne de peru, carne de suíno, carne bovina), sementes (amendoim, semente de girassol, semente de abóbora), gérmen de trigo, cogumelos, legumes, leites, ovos, ameixa, abacate, entre outras fontes. Em fontes animais a forma predominante é a nicotinamida e é facilmente absorvida, já nos vegetais está em forma de ácido nicotínico que será convertido à NAD (fígado e intestino) e depois à nicotinamida. A niacina presente nos cereais não é biodisponível, pois está em forma de niacitina. A torrefação ou tratamento com álcalis dos cereais pode aumentar a biodisponibilidade liberando ácido nicotínico.
Os níveis de niacina podem ser testados com a solicitação do NAD eritrocitário e NADP eritrocitário, sendo que a relação NAD/NADP menor que 1 indica deficiências, além da avaliação urinária de N1-metilnicotinamida. Para adultos, a RDA é de 16mg para homens e 14mg para mulheres e o UL 35mg/dia. O NOAEL para ácido nicotínico é de 500mg e para nicotinamida 1.500mg e o LOAEL 1.000mg (500mg de liberação lenta) para ácido nicotínico e 3.000mg para nicotinamida. O ácido nicotínico em doses moderadas pode causar vasodilação marcante, com enribescimento, queimação e coceira da pele. Em doses altas pode levar à hipotensão. A nicotinamida não possui o mesmo efeito. No caso de indivíduos intolerantes às estatinas a niacina pode ser pensada como estratégia para controle de LDL-c em hipercolesterolemia familiar grave. Em alguns casos, como icterícia, doença hepática, doenças na vesícula biliar, diabetes mellitus, gota, úlcera péptica o uso em altas doses pode ser desaconselhada.
A triagem genética é útil em termos de custo e não invasividade para a abordagem individualizada em pacientes com DHGNA, elucidando a predisposição e a melhor abordagem de suporte nutricional relacionada à niacina. Com o BioNutrientes da Biogenetika você dispõe desta e de outras análises que são fundamentais para a prática da saúde de forma integral nas diversas fases da vida.
*Conceito de polimorfismo: são as variações na sequência de DNA que podem alterar as proteínas produzidas pelo organismo podendo gerar impactos para as vias envolvidas, metabolismo e saúde de quem as porta. Para ser considerado um polimorfismo esta variação precisa ser de no mínimo 1% em uma população.
REFERÊNCIAS
COZZOLINO, Silvia M. Franciscato (org.). BIODISPONIBILIDADE DE NUTRIENTES. 5. ed. Ver. E atual. Barueri, SP : Manole, 2016.
PAOLINI, Erika; LONGO, Miriam; MERONI, Marica; TRIA, Giada; CESPIATI, Annalisa; LOMBARDI, Rosa; BADIALI, Sara; MAGGIONI, Marco; FRACANZANI, Anna Ludovica; DONGIOVANNI, Paola. The I148M PNPLA3 variant mitigates niacin beneficial effects: how the genetic screening in non-alcoholic fatty liver disease patients gains value. Frontiers In Nutrition, [S.L.], v. 10, p. 01-13, 2 mar. 2023. Frontiers Media SA. http://dx.doi.org/10.3389/fnut.2023.1101341.