Nas últimas décadas, o interesse pelo microbioma intestinal cresceu exponencialmente, trazendo à tona seu impacto em diversas condições de saúde, inclusive na modulação da dor crônica. O microbioma desempenha um papel significativo na regulação da dor por meio do eixo intestino-cérebro, uma via de comunicação bidirecional que envolve sistemas neurais, imunológicos e hormonais. Este texto explora as principais evidências sobre o microbioma e a dor, incluindo mecanismos de ação, tipos de dor influenciados e potenciais terapias clínicas.

O Papel do Eixo Intestino-Cérebro na Modulação da Dor

O eixo intestino-cérebro é a principal via de comunicação entre o sistema nervoso central (SNC) e o trato gastrointestinal (TGI). A microbiota intestinal, composta por trilhões de microrganismos, influencia o SNC diretamente através da produção de metabólitos como ácidos graxos de cadeia curta (AGCCs) e indiretamente pela regulação da imunidade e inflamação. A disbiose, ou desequilíbrio microbiano, pode perturbar essa comunicação, contribuindo para um estado de hiper-reatividade à dor.

Os AGCCs, como o butirato, são produtos da fermentação bacteriana e atuam em receptores específicos (como receptores acoplados a proteínas G) nas células do sistema imunológico. Esses ácidos reduzem a produção de citocinas pró-inflamatórias, ajudando a manter a integridade da barreira intestinal e prevenindo a ativação excessiva do sistema imunológico. Quando há uma disbiose, essa barreira se torna mais permeável, permitindo que microrganismos ou moléculas inflamatórias entrem na corrente sanguínea e contribuam para estados inflamatórios que exacerbam a dor.

Mecanismos Microbianos na Sensibilização da Dor

Estudos com modelos animais revelam que o microbioma pode ativar diretamente vias de dor em condições específicas. Em casos de dor visceral, como na síndrome do intestino irritável (SII), observou-se que certos metabólitos microbianos promovem a liberação de neuropeptídeos, como o peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP), que amplifica a sensação de dor. Além disso, algumas bactérias intestinais produzem histamina, que pode aumentar a hipersensibilidade visceral e promover inflamação crônica. Isso sugere que a modulação do microbioma pode ajudar a controlar sintomas de dor em doenças intestinais inflamatórias e funcionais.

Outro mecanismo relevante é a ativação de receptores de dor na raiz dorsal dos gânglios (DRG), que detectam padrões moleculares associados a patógenos (PAMPs) e desencadeiam respostas inflamatórias. Esses receptores, como os Toll-like receptors (TLRs), identificam componentes microbianos que podem sensibilizar o sistema nervoso periférico e aumentar a dor em condições crônicas. Esse efeito ocorre em condições como neuropatia diabética e dor induzida por quimioterapia, onde o microbioma disbiótico amplifica a resposta dolorosa por meio de citocinas inflamatórias, como IL-1β e TNF-α.

Tipos de Dor Influenciados pelo Microbioma

Dor Neuropática: Condições de dor neuropática, como a neuropatia diabética e a dor induzida por quimioterapia, têm uma relação com o microbioma intestinal. A disbiose pode exacerbar a inflamação periférica e central por meio da ativação de células gliais e microgliais, que produzem citocinas inflamatórias e amplificam a resposta à dor. Tratamentos com probióticos e antibióticos demonstraram reduzir a ativação glial e, consequentemente, a dor em modelos animais, sugerindo uma via terapêutica promissora para modular a dor neuropática.

Dor Visceral: A dor visceral, comum em doenças como a SII, é modulada diretamente pela composição do microbioma. Alterações na microbiota podem sensibilizar as vias de dor visceral por meio da produção de AGCCs, PAMPs e substâncias pró-inflamatórias, que atuam diretamente nos receptores sensoriais do intestino. Intervenções com probióticos específicos, como Bifidobacterium bifidum e Faecalibacterium prausnitzii, têm mostrado reduzir significativamente a sensibilidade visceral e melhorar a qualidade de vida dos pacientes com SII

Cefaleias e Enxaquecas: A relação entre o microbioma e cefaleias, especialmente enxaquecas, é explorada com base em estudos que mostram que certos metabólitos bacterianos (como histamina e sais biliares secundários) podem influenciar o SNC e aumentar a suscetibilidade a crises de dor. Probióticos como Lactobacillus acidophilus e Lactobacillus reuteri foram eficazes em reduzir a frequência e a intensidade das cefaleias, indicando uma potencial abordagem complementar para o tratamento de enxaquecas.

Terapias Baseadas na Modulação do Microbioma

Probióticos: Suplementos probióticos podem melhorar sintomas de dor, especialmente em condições de dor visceral e inflamatória. Cepas como Bifidobacterium bifidum e Lactobacillus reuteri podem ajudar a reduzir a dor em pacientes com SII, possivelmente restaurando a integridade da barreira intestinal e modulando o sistema imunológico. Esses efeitos são especialmente relevantes para pacientes que não respondem bem aos tratamentos convencionais para dor.

Transplante de Microbiota Fecal (TMF): O TMF tem sido explorado como uma alternativa promissora para restaurar o equilíbrio da microbiota em casos graves de disbiose. Estudos utilizando modelos animais demonstraram que o TMF de doadores saudáveis pode reduzir a hipersensibilidade visceral e diminuir os níveis de citocinas inflamatórias em modelos de dor. O TMF tem sido particularmente eficaz para pacientes com distúrbios gastrointestinais inflamatórios que apresentam dor crônica associada.

Dieta e AGCCs: A dieta também desempenha um papel fundamental na modulação da dor por meio da influência na microbiota. A dieta FODMAP, por exemplo, limita carboidratos fermentáveis e reduz sintomas de dor abdominal e desconforto em pacientes com SII. Além disso, dietas ricas em fibras estimulam a produção de AGCCs benéficos, como o butirato, que demonstram reduzir a inflamação e a sensibilidade dolorosa em condições intestinais.

Implicações Clínicas para o Manejo da Dor

Na prática clínica, o conhecimento sobre a relação entre microbioma e dor abre novas possibilidades de intervenção. A avaliação do microbioma intestinal em pacientes com dor crônica pode revelar desequilíbrios que contribuem para a perpetuação da dor. Com isso, profissionais da saúde podem incorporar intervenções baseadas no microbioma, como probióticos e ajustes dietéticos, para complementar o tratamento da dor. 

Para pacientes com SII refratária ou enxaquecas crônicas, a introdução de probióticos e a avaliação dietética podem ser medidas eficazes. Além disso, a possibilidade de utilizar o TMF em casos de dor associada à disbiose grave representa um avanço importante. A aplicação clínica dessas intervenções depende de uma abordagem integrativa e personalizada, considerando as condições e respostas individuais de cada paciente.

Conclusões

A pesquisa sobre a relação entre o microbioma intestinal e a dor crônica é promissora, oferecendo novas perspectivas para o tratamento e manejo de dores complexas e persistentes. Com terapias direcionadas, é possível modular a resposta dolorosa e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, especialmente em casos onde tratamentos convencionais se mostram ineficazes. A modulação do microbioma, através de intervenções como probióticos, TMF e ajustes dietéticos, representa um campo emergente que, se incorporado na prática clínica, tem potencial para transformar a abordagem no manejo da dor crônica.

Referências

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